quinta-feira, junho 22, 2006

Das memórias e do perfume da macieira em flor

É no mínimo curioso a forma como nossas lembranças nos chegam, trazidas aos pedaços, entregues aos caprichos de nossa memória.
Lembrei-me hoje de minhas amiguinhas de infância.
Não sei precisar o quê exatamente despertou em mim tais reminiscências, mas posso jurar que teve relação com o gesto obsceno que a garotinha franzina que vendia drops de hortelã fez para o motorista do ônibus parado no sinaleiro.
Como num daqueles truques em que o mágico vai tirando da manga as cartas que imaginávamos desaparecidas, assim foram saltando diante dos meus olhos, minhas lembranças mais antigas.
E mais doces também.

Giovana era a mais velha, e aparentava ter mais idade do que realmente tinha.
Menina ainda, 9 ou 10 anos, e já chamava a atenção dos garotos que assobiavam e lhe faziam gracejos quando passava na rua. Olhos puxados que remetiam a uma descendência oriental que nunca, nem sequer existiu.
Lábios enormes, tinha uma gargalhada que quando começava, parecia nunca ter fim.Daquelas que a gente ri junto sem saber o motivo, apenas porquê é engraçado, e pronto.
Cristila, a magricela de cabelos ondulados e dentes separados, tinha os modos afetados , ranço dos mimos e paparicos que recebia de pais que mesmo longe de serem ricos, desdobravam-se para satisfazer a todos os seus caprichos. Desde a radiola vermelha portátil - sonho de consumo de todos os jovens da época - até os tamanquinhos confeccionados em jeans com pequenas borboletas bordadas à mão, que combinavam com o vestido que a madrinha trouxera de uma viagem à São Paulo, e com os quais eu mesma sonhava.
Eram sempre dela as idéias mais estapafúrdias. Como a de provocar os carneiros e ovelhas que pastavam tranquilos, cutucando-os com galhos arrancados das árvores, correndo depois atrás de abrigo nos galhos da macieira caída, assim que eles avançavam furiosos em nossa direção.
Ah! A macieira.
Talvez nem fosse tão grande quanto me parece nas lembranças.
O fato é que em um dia de tempestade , ela tombou ao chão.
Muitas de suas raízes permaneceram fincadas à terra, o que garantiu que, mesmo tombada, ela continuasse a desenvolver galhos e produzir frutos.
Costumávamos nos embrenhar por entre seus galhos na época da florada, quando suas flores delicadas exalavam um suave perfume que impregnava nossas roupas e cabelos.
Quando pequeninas maçãs que não atingiam tamanho maior que o de um limão já pendiam dos galhos curvados, enchíamos os bolsos e sentávamos cada uma em um galho. Então, solenemente, um desejo especial era concedido àquela que descobrisse dentre todas, a fruta maior, mais bonita, de casca mais lisinha e mais rosada.
Eu era um bom meio termo entre as duas garotinhas. Nem gorducha, nem magricela. Nem alta, nem baixinha.Sardas nas bochechas, cabelos compridos e rebeldes que minha mãe tinha o capricho e o trabalho de pentear e desembaraçar, prendendo em lindas chiquinhas ou rabos-de-cavalo, adornadas por laços de tecido que finalizavam, combinando com meus vestidinhos de chita; vestidos que ela mesma costurava para mim e minha irmã, pois saíam muito mais em conta que os comprados nas lojas.
"Uma menina tem que andar sempre arrumadinha!" dizia ela, explicando-me da importância de ser feminina e nunca, em hipótese alguma, dizer palavrões; de andar com as mãos sempre limpas e as unhas bem aparadas, e de sempre, em qualquer situação, sentar com as pernas fechadas ou cruzadas, de forma que nunca se pudessem enxergar as calcinhas de renda por baixo dos saiotes e vestidos.
"Meninas não brigam com meninos minha filha...é muito feio!!" repetia sem se cansar, sempre que eu chegava em casa chorando porque havia me metido em alguma encrenca com os garotos.
Certo é que eu chorava, mas sempre batia. Nunca apanhei. Não sei se eles não me batiam porque eu era menina, ou porque tinham medo de mim...mas eu nunca apanhava.
O que mais chamava a atenção em mim, era a incontestável capacidade de viver arranhada, arrebentada, estropiada. Prova disso era o número sem par de cicatrizes, que hoje já quase nem aparecem: no joelho, na orelha, no braço, na perna, nos pés.
Se algum acidente acontecia, podia-se saber que lá estava eu.
E era comigo. Sempre.Os plantonistas do pronto-socorro já me conheciam pelo nome, e sabiam que a confusão estava feita quando eu ia chegando. Sim, eu era mesmo impossível.
Pelo menos uma ou duas vezes por semana nos metíamos,as três, no sótão da casa de Cristila. Uma carregando a tal radiola vermelha, outra uma jarra com copos e refresco , outra os LP´s do Elvis Presley surrupiados do quarto de sua irmã mais velha.
Passávamos a tarde lá, cantando e dançando em frente ao antigo espelho com suporte de rodinhas, tendo por testemunhas apenas as rolinhas que se empoleiravam nos beirais das pequenas janelas de madeira esculpida.
Das três, era eu a mais entusiasmada. Inventava passos e coreografias, fazendo caras e bocas de Ann Margret, arrancando gargalhadas das outras duas.

O ônibus dá uma freada brusca, e pulo do banco assustada.
Quase perco minha parada.
Aperto o botão da campainha e como fumaça, as lembranças vão esmaecendo até sumirem, quando desço e meus passos avançam na calçada.
Um vento suave sopra na manhã cinza e fria.
Com ele, o perfume quase imperceptível de flores de maciera.

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