segunda-feira, janeiro 31, 2005

Das manhãs e de sapatos perdidos

Atrasada.
Mais uma vez.
Porcaria de despertador, pensou.
De um pulo alcançou a soleira da porta, tropeçando no tapete do corredor.
Merda, merda, merda.
Estatelada no chão frio, ria sozinha de seu próprio desconcerto.
A julgar pelo baque da queda, já antevia o hematoma.
Banho frio.
Não por opção, que estava longe de apreciar a água fria.
Resmungando para si mesma, recriminou-se por não ter já comprado um chuveiro decente para substituir a ducha comprada por módicos R$20,00 na lojinha da esquina.
Enrolada na toalha, parou diante do espelho examinando as formas mutantes que as roupas escondiam. Tinha a nítida impressão de que elas mudavam a cada dia. E mudavam mesmo. Mutante, repetiu para si mesma em voz alta.
O alarme do despertador dispara, trazendo-a de volta à realidade.
Porcaria de despertador...!
Enquanto fervia a água para o café espiou pela porta da cozinha o sol que ameaçava surgir por trás das nuvens escuras.
Atrasada.
Atrasada e meia.
Adorava o cheiro do café passado na hora que de alguma forma remetia-lhe ao tempo de infância. Ao café da mãe-preta feito no coador de pano, sobre o fogão a lenha de chapas impecavelmente limpas e reluzentes. Pão caseiro recém tirado da forma.
Podia ouvir as palavras da mulher pequenina e de feições por vezes rude, por vezes afável: "Tira essa mão daí menina, que ainda está quente! Vai ficar com dor de barriga!"
A mãe-preta, como a chamavam carinhosamente todos os filhos por ela adotados de coração. Suspeitava mesmo que a causa de sua passagem desta para melhor houvesse sido uma hiper ruptura cardiovascular (?). Excesso de amor. Ou super lotação. Gente demais dentro de um só coração. Amor demais.
Esta era toda a memória que conseguira reunir de um tempo em que julgava, haveria de ter sido feliz.
Toda criança é feliz, pensou.
Ela também haveria de ter sido um dia.
Um gole do café quente, com gosto de nostalgia.
Quisera tantas vezes lembrar mais, e não podia.
O tic-tac do relógio na parede denunciando a transgressão.
Atrasada.
Atrasada ao cubo.
Deu de ombros e uma vez mais deteve-se diante do seu reflexo no espelho, agora já vestida.Invariavelmente demorava a encontrar-se nele, seu reflexo.
Os sapatos.
Procurou por eles embaixo da cama, no armário, no banheiro, até encontrá-los perdidos atrás do sofá.
Suas lembranças de infância já iam longe, enquanto calçava os sapatos e imaginava porque cargas d´água teriam ido parar atrás do sofá.
Mistério.
Mais uma passada diante do espelho - mulher tem dessas coisas .
Check-list.
O livro para devolver na biblioteca, o filme que um amigo pediu emprestado, o dinheiro para pagar a taxa do condomínio sobre a geladeira, o cartão que veio de fora e que deveria ter sido respondido há séculos, as chaves de casa, do carro, controle remoto do portão.
Saiu, trancando a porta atrás de si.
Nas mãos, tudo o que precisava.
No coração, o imenso desejo de ser feliz.


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