sexta-feira, outubro 22, 2004

Memórias: Luto

Arrastou-se da cama, cabelos desalinhados, olhos inchados que denunciavam o choro da madrugada mal dormida.
Foi até o banheiro e parou diante do espelho, analisando a imagem refletida.
A imagem de alguém que não ela. Um alguém que poderia bem ser outrém.
Abriu a torneira deixando que a água escorresse por entre seus dedos, como a própria vida parecia fazer. Nesse momento pensava em nada, e chegara à conclusão de que o nada de fato existia.
Nada. Um branco total.
O branco agonia. O branco despero.
Jogou a água no rosto numa inútil tentativa de parecer viva.
O medo e o desespero já tomando conta dos pensamentos, a dor retornando lancinante, a pulsação acelerada, o prenúncio do choro.
Desesperada arrancou a roupa e entrou no chuveiro.
Deixou-se ficar ali, a água lavando a alma,
A alma buscando a calma.
Pela fresta na janela a visão do céu lhe causava náuseas.
Parecia-lhe tão cruel que o sol ainda brilhasse, a despeito de toda a sua dor.
Desejou ali, sentada no chão de ladrilhos, que a vida lhe abandonasse aos poucos.
Amaldiçoou os poetas e amantes, infelizes felizes que pouco faziam de sua agonia,
afrontando-lhe com histórias de amor bem sucedidas,
testemunhos felizes de amores correspondidos e vidas bem vividas.
Relutante, saiu.
Enrolou-se na toalha, e parou diante do armário de portas abertas.
Tudo parecia fútil, vão, sem nexo.
Precisava tomar uma atitude. E tomou.
Preto, ela vestiu.
Morrera o amor.
E hoje ela estava de luto.

Ouvindo: Etta James "Am I blue"

(publicado originalmente neste blog aos 28/03/2003)

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